DESMISTIFICANDO O ÓLEO DA UNÇÃO

Quando certos populares movimentos evangélicos determinaram que ter fé é praticar continuamente o mesmo ritual na esperança de resultados diferentes a igreja mergulhou em um misticismo profundo. Quantas milhares de crentes já ungiram para choques de carros e quantos poucos puderam comprar o carros dos seus sonhos?

Do púlpito as probabilidades são apresentadas ao contrário, a exceção como regra. Enquanto outros grupos evangélicos liberais se empenham em alargar o caminho estreito, esses preferem mistificar o caminho largo.


Parte desse fenômeno de mistificação pode ser explicado desde nossa interpretação bíblica. Não há palavras de raizes abstratas no antigo hebraico, quando o hebreu comum desejava se espressar sobre um pensamento abstrato ele usava figuras de linguagens, metáforas na maioria das vezes e até mesmo duas metáforas poderiam ser encontradas nas mesma frase segundo o Dr. R. H. Kennett em uma de suas teses de mestrado pela Oxford University em 1931, fato que, segundo Kennett, sempre tornou o trabalho dos tradutores, mesmo os da septuaginta, um suplício, pois ao identificar pelo contexto uma ideia abstrata em uma palavra concreta deveriam selecionar uma palavra abstrata correspondente mais próxima no grego. Ora não por coincidencia são essas palavras abstratas nas línguas ocidentais que vieram a acumular durante milenios de cristianismo, uma áurea mística que não é encontrada originalmente nos textos sagrados.

As palavras “santo” e “consagrado”, por exemplo, possuem conotações distintas em nossa cultura do que realmente tinham na antiga cultura hebraica onde eram aplicadas no dia a dia quando, por exemplo, santificavam um bezerro para um banquete, ou consagravam aquele jarro de barro para carregar somente àgua. Simplificando, não havia nada de santo no uso da palavra Qadosh (קָדוֹשׁ - santo) e nada de consagrado na palavra Qadash (קָדַשׁ - consagrar). Somente para ilustrar: Se voce usasse o hebraico antigo no seu dia a dia poderia dizer que a sua escova de dentes é “santa” para voce, até que voce a compartilhou com outra pessoa, nesse caso você a profanou “chol” (חֹל), portanto as palavras “santo” e “consagrado” eram bem profanas, ou seja, de uso comum entre os hebreus. Em nossa cultura somente usamos as palavras santo e consagrar em conversas de cunho religioso e provavelmente nunca veremos alguém dizer que “santificou” uma picanha para ser assada no final de semana sem imaginar que a carne recebeu uma unção com óleo, oração ou imposição de mãos.

Em Gênesis 38: 22, por exemplo, uma prostituta é aquela que se santificou, consagrou, ou melhor dizendo “se separou” para a prostituição “E voltou a Judá, e disse: Eu não posso encontrá-la; e também os homens do lugar, disseram que não havia nenhuma prostituta (ou Qedeshah) neste lugar”

A costume cultural de ungir com óleo ganhou também caráter místico para além da finalidade pelo qual era usado. Embora a unção com óleo seja mencionada 20 vezes no Antigo Testamento somente três vezes é chamado de "santo” óleo da unção", e os hebreus eram estritamente proibidos de reproduzir o óleo para uso pessoal, (Exodo 30:32-33) e não há nenhuma indicação em toda a Bíblia de que o óleo ou seus ingredientes tinham qualquer poder sobrenatural,  outra vez, o misticismo está nos olhos de quem lê.

Há algumas passagens do Novo Testamento que referem à prática da unção com óleo, e nenhuma deles oferece uma explicação para a sua utilização. Podemos tirar nossas conclusões a partir do contexto bíblico e cultural.

Em Marcos 06:13, os discípulos ungiram os doentes e os curavam, e em Tiago 5:14, os anciãos da igreja são encorajados a ungir o doente com óleo afim de cura-lo.

O uso do óleo para ungir enfermos era uma prática medicinal na antiga mesopotâmia os remédios utilizados pelos antigos hebreus eram óleos especialmente de bálsamo. ( Mr. J. C. Harding ; British Medical Journal XLVI . 11 , li .8) O azeite de oliva era também usado para fins medicinais e era aplicado nas feridas para amaciá-las como em Isaías 1:6 “Desde a planta do pé até a cabeça não há nele coisa sã; há só feridas, contusões e chagas vivas; não foram espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo.”

A unção dos enfermos com óleo não era a aplicaçado sobre a fronte como na tradição católica, tampouco o óleo era derramado sobre a cabeça como para perfumar, mas era aplicado sobre as feridas para aliviar a dor, amolecendo-as, ou para massagear as contusões internas.

Jeremias 8:22 - Porventura não há bálsamo em Gileade? ou não se acha lá médico?

Salmos 109:18 “Assim como se vestiu de maldição como dum vestido, assim penetre ela nas suas entranhas como água, e em seus ossos como óleo!  Lucas 10:34 “e aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas óleo e vinho; e pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem e cuidou dele.”

Ao sugerir que a unção com óleo dos enfermos deveria ser seguido de oração  Tiago em sua carta parece apenas citar uma antiga Mishná, tradicão cultural medicinal, (Yer. Ma'as. Sh. ii. 53a; Bab. Yoma, 77b; e Yer. Shab. xiv. 14-C) datada da volta do cativeiro babilônico que especificava que uma oração deveria seguir a unção com óleo sobre as mazelas (loḥesh 'al ha-Meca) dos enfermos nas seguintes palavras “a oração salvará o doente e Hashen o levantará”. Coincidência ou contextualização cultural?

Embora também sendo também uma Mishná, o costume de lavar as mãos antes das refeições, seguida de uma oração, prática rejeitada por Jesus, ao contrário da unção com óleo não pode ser encontrada no Velho Testamento,  mas somente no Talmude, livro de tradições observado pelos fariseus e que foi o objeto da maioria dos debates entre estes e Jesus.

Vós deixais o mandamento de Deus, e vos apegais à tradição dos homens. Disse-lhes ainda: Bem sabeis rejeitar o mandamento de deus, para guardardes a vossa tradição.” (Marcos 7:8-9)

Portanto diante da melhor das contextualizações é óbvio que o princípio bíblico contido nas palavras de Tiago e na missão dos discípulos é o de visitar e cuidar dos enfermos orando por eles. O equivalente moderno da unção sobre os enfermos pode ser qualquer medicina mais efetiva que o óleo, até mesmo uma aspirina conforme o caso, o que passar disso é fanatismo e misticismo de quem deseja atribuir elementos mágicos ao óleo.

Em Marcos 14:3-9, Maria unge os pés de Jesus como um ato de adoração e em Hebreus 1:8-9, Deus diz a Cristo quando Ele retorna triunfalmente  ao céu, "O teu trono, ó Deus, vai durar para sempre e sempre", e Deus unge Jesus "com o óleo da alegria."

Os hebreus não criaram o costume de ungir seus hóspedes com óleo, confirmados por dados antropológicos, esse era um costume mesopotámico e fazia parte da cultura dos povos nômades como os beduínos e consequentemente, da família de Abraão. Receber alguém como hóspede em sua cada era muito mais que deixar alguém passar a noite por ali. Era um obrigação moral de grande prestígio social. O evento era feito nos seguintes passos:



O hóspede deveria ser recebido pelo anfitrião com as palavras “Paz seja contigo!” ao que ele responderia “Paz seja com a sua casa (ou tenda)!” diante dessas palavras o anfitirão colocava a mão direita sobre o ombro esquerdo do hóspede e se inclinava para beijar a face direita, depois colocava a mão esquerda sobre o ombro direito e beijava a face esquerda, estava dado ósculo. Logo o anfitrião oferecia água para lavar os pés do hóspede. Depois de ter seus pés lavados pelo anfitrião ou seus servos, o hóspede recebia unção de óleo perfumado que era derramado aos seus pés pelo anfitrião, e em alguns casos se lhe ungia todo o corpo a partir do óleo derramado sobre a cabeça. A unção era seguida por um banquete e cantigos de alegria em que muitas vezes os vizinhos eram convidados a participar.   Desse momento em diante até o fim da visita, o hóspede estava sob a proteção do dono da casa, literalmente o hóspede se tornava senhor da casa, e o anfitrião, seu servo, os inimigos se tornavam então inimigos do dono da casa que deveria a todo custo, protege-lo. A partir dessa contextualização cultural, por favor, leia os textos abaixo:

Lucas 7: 44-45 - E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu esta mulher? Entrei em tua casa, e não me deste água para os pés; mas esta com suas lágrimas os regou e com seus cabelos os enxugou. Não me deste ósculo; ela, porém, desde que entrei, não tem cessado de beijar-me os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo; mas esta com bálsamo ungiu-me os pés.

Marcos 14:3 - Estando ele em Betânia, reclinado a mesa, veio uma mulher que trazia um vaso de alabastro cheio de bálsamo de nardo puro, de grande preço; e, quebrando o vaso, derramou-lhe sobre a cabeça o bálsamo.

Genesis 18: 2-3 - Levantando Abraão os olhos, olhou e eis três homens de pé em frente dele. Quando os viu, correu da porta da tenda ao seu encontro, e prostrou-se em terra, e disse: Meu Senhor, se agora tenho achado graça aos teus olhos, rogo-te que não passes de teu servo. Eia, traga-se um pouco d'água, e lavai os pés e recostai-vos debaixo da árvore;

Genesis 19:5-7 - Os homens chamando a Ló, perguntaram-lhe: Onde estão os homens que entraram esta noite em tua casa? Traze-os cá fora a nós, para que os conheçamos. Então Ló saiu-lhes ã porta, fechando-a atrás de si, e disse: Meus irmãos, rogo-vos que não procedais tão perversamente; eis aqui, tenho duas filhas que ainda não conheceram varão; eu vo-las trarei para fora, e lhes fareis como bem vos parecer: somente nada façais a estes homens, porquanto entraram debaixo da sombra do meu telhado.

Concluindo, o princípio bíblico contido nos versículos acima é o da prática da hospitalidade e de dar honra os seus hóspedes. Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, sem o saberem, hospedaram anjos.” Hebreus 13:2

A carta de Paulo a 1 Timóteo 5:10 relaciona diretamente a hospitalidade ao lavagem dos pés "se exercitou hospitalidade, se lavou os pés aos santos, se socorreu os atribulados, se praticou toda sorte de boas obras."

Em João 13 Jesus se torna anfitrião recebendo os discípulos para a festa da ceia: "Jesus, sabendo que o Pai lhe entregara tudo nas mãos, e que viera de Deus e para Deus voltava, levantou-se da ceia, tirou o manto e, tomando uma toalha, cingiu-se. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos, e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido."


Na parábola das 10 virgens as noivas usam o óleo como conbustível para suas lamparinas,  não houvesse o noivo se atrasado, provavelmente vindo de outra cidade, o uso do óleo de azeite seria desnecessário e como qualquer outra festa de casamento esta se celebraria durante o dia. Mesmo que óleo de azeite também era o combustível para a Menorah, o candelabro do tabernaculo, era também o combustível para qualquer outra lampada não só em Israel como em todo o mundo antigo até os recentes séculos nas mais diversas culturas e civilizações. Usando a mesma alegoria que associa o Espírito Santo ao combustivel das lâmpadas poderiamos nos perguntar que, chegasse o noivo mais cedo, sendo ainda dia, ou seja, se Jesus voltasse no ano 60 AD, seria o Espírito Santo desnecessário? Vigiar sim é necessário, também em relação a verdade na nossa interpretação da Bíblia.

A expressão "ungir o escudo" em Isaías 21:05, se refere ao costume de esfregar óleo no couro do escudo de modo a torná-lo flexível e apto para seu uso em guerra.

A unção dos Reis e Sacerdotes seguem a mesmo costume cultural. Óleos especiais, na verdade perfumes feitos a partir de misturas de especiarias caríssimas, eram especialmente preparados para as cerimonias de consagração onde esse perfume era derramado como perfume sobre a cabeça. Os egípcios já ungiam seus faraós e sacerdotes com óleo antes que Israel existisse (imagem abaixo). 


Embora o ato de ungir alguém com óleo no dia de sua consagração seja inofensivo, não pode ser justificado no texto bíblico, pois o óleo usado nas igrejas, geralmente o óleo Johnson de farmácia, que é infinitamente inferior aos caros óleos perfumados usados nessas ocasiões. Nesse caso um perfume de alguma marca famosa faz mas justiça à tradição dos mesopatamios.

A unção com óleos eram usados da mais diversas maneiras no dia a dia do hebreu comum. Como comida (1 Reis 17:12) Como filtro solar para pele no calor forte do clima palestino, nesse caso o óleo era aplicado para as partes expostas do corpo, em especial no rosto (Salmos 104:15) e fazia parte da higiene diária (Mateus 6:17). O óleo perfumado era aplicado após o banho (Rute 3:3; 2 Samuel 12:20; Ezequiel 16:9); era usado na preparação para uma festa (Eclesiastes 9:8; Salmos 23:5) era algo fino (Amós 6:6). Deixar de ungir-se diariamente era um sinal de luto (2 Samuel 14:2, Daniel 10:3), a volta ao uso do óleo indicava que o luta havia acabado (2 Samuel 12:20).

Mesmo que talvez as cartas dos apóstolos e os evangelhos possam ter sido escritas em grego, a mente, a cultura, costumes e filosofia de vida dos autores continuava sendo hebraica e a referencia à unção com óleo deve ter o valor cultural devido e não ser tratado como um ritual cristão de carater sobrenatural.  É aceitável que se use a unção com óleo como um símbolo, por exemplo numa ordenação de pastores, mas qualquer valor sobrenatural acresentado a ele seria o mesmo que em 500 anos no futuro alguém utilizasse garrafinhas de àgua mineral para curar alguém porque é o que usamos hoje no púlpito para aliviar a garganta seca dos nossos pregadores.

Não há nada nas Escrituras que comanda ou mesmo sugere que deveríamos usar o óleo como usamos hoje, mas também não há nada que proiba seu uso, senão o bom senso que nos pode livrar de escanda-los pois o único escândalo aceitável ao evangelho é da cruz.

Wesley Moreira